A transição energética global não é apenas uma mudança tecnológica ou a simples substituição de carvão, petróleo e gás por fontes renováveis. Trata-se de um processo que carrega implicações profundas para o desenvolvimento econômico, a justiça social e a soberania dos territórios.
No Sul Global onde se encontram algumas das maiores reservas de sol, vento e biomassa do planeta o tema ganha contornos ainda mais complexos. De um lado, há um potencial extraordinário de geração de energia limpa e atração de investimentos. De outro, persistem desigualdades históricas, altos custos de capital e pressões por crescimento acelerado. Essa equação coloca a transição energética justa no centro do debate: como avançar sem repetir o velho modelo extrativista que concentrou riqueza e deixou comunidades à margem?
Não se trata apenas de instalar mais turbinas ou painéis solares. O desafio é redesenhar os modelos de desenvolvimento, de modo que a descarbonização caminhe junto com a inclusão social, a segurança energética e a valorização das economias locais. Segundo a Agência Internacional de Energia (IEA), os investimentos em renováveis no Sul Global ainda representam menos de 15% do total mundial, apesar de a região concentrar mais de 40% do potencial de expansão. Esse descompasso mostra que a transição não é neutra nem automática ela reflete escolhas políticas, regulatórias e econômicas.
Portanto, a questão central que se impõe é clara: quem vai se beneficiar dessa transição? Países e comunidades que conseguirem estruturar políticas de retenção de valor, capacitação e governança terão a chance de transformar a energia limpa em vetor de desenvolvimento soberano. Já aqueles que não enfrentarem esse debate correm o risco de permanecer como fornecedores periféricos de recursos baratos para as economias industrializadas.
O paradoxo da abundância no Sul Global
O Sul Global que abrange América Latina, África e grande parte da Ásia concentra mais da metade da população mundial e alguns dos maiores potenciais de recursos renováveis do planeta. No entanto, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA, 2024), a região recebe menos de 20% dos investimentos globais em energia limpa. Esse descompasso escancara uma realidade incômoda: há energia em abundância, mas falta capital, infraestrutura e governança para transformá-la em desenvolvimento sustentável.
O Brasil é um exemplo emblemático dessa contradição. O país ostenta uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com cerca de 85% da geração proveniente de fontes renováveis, de acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Apesar desse dado impressionante, os desafios estruturais persistem. A matriz ainda depende fortemente das grandes hidrelétricas vulneráveis a crises hídricas e novas tecnologias, como armazenamento em larga escala e hidrogênio verde, avançam de forma lenta e concentrada em poucos territórios. Nas regiões periféricas, o acesso desigual à energia continua limitando a inclusão social e a competitividade econômica.
Em paralelo, a pressão internacional por metas climáticas mais rígidas e descarbonização em ritmo acelerado impõe desafios adicionais. Países em desenvolvimento são cobrados a avançar na mesma velocidade das economias ricas, sem levar em conta condições locais como desigualdade social, custo elevado do capital e infraestrutura defasada. Relatório do Banco Mundial (2023) destaca que o custo do financiamento de projetos renováveis no Sul Global pode ser até três vezes maior que em países desenvolvidos, um fator que compromete a competitividade e atrasa a expansão.
O cenário atual, portanto, é paradoxal. De um lado, abundância de recursos e metas climáticas ambiciosas; de outro, um déficit de investimentos e condições desiguais de transição. A questão que se coloca é se os países do Sul Global conseguirão converter seu potencial renovável em um caminho de desenvolvimento soberano ou se continuarão presos ao papel histórico de fornecedores periféricos de recursos baratos para nações industrializadas.
O peso das barreiras estruturais na transição justa
A busca por uma transição energética justa no Sul Global enfrenta barreiras que vão muito além da dimensão tecnológica. São obstáculos estruturais e sistêmicos que revelam que a transição não será neutra nem automática, pois envolve disputas de poder, desigualdades históricas e tensões entre interesses globais e locais.
O primeiro desafio é a assimetria no financiamento. Os fluxos de capital internacional seguem concentrados em países de menor risco regulatório e com maior retorno imediato, deixando grande parte do Sul Global fora dos investimentos estratégicos. De acordo com a BloombergNEF (2023), o custo médio de financiamento para projetos renováveis na América Latina e na África pode ser até três vezes maior do que na Europa e nos Estados Unidos. Essa disparidade torna inviável projetos justamente em comunidades vulneráveis e territórios isolados, onde a transição energética poderia gerar maior impacto social.
Outro ponto crítico é a persistência de modelos extrativistas. Apesar do discurso da descarbonização, muitos empreendimentos renováveis seguem a lógica da exportação de energia ou da produção de hidrogênio verde voltada a mercados externos, sem redistribuição real de valor nos territórios de origem. O paradoxo é evidente: países ricos recebem energia limpa para acelerar suas metas de transição, enquanto comunidades locais permanecem à margem, muitas vezes sem acesso adequado à infraestrutura básica.
Também preocupa a ausência de políticas consistentes de conteúdo local. Sem integração de cadeias produtivas, estímulo à inovação regional e qualificação de mão de obra, a transição corre o risco de se limitar à importação de equipamentos e exportação de energia. Estudo da IRENA (2023) aponta que programas de conteúdo local bem estruturados poderiam aumentar em até 40% a retenção de valor econômico nas regiões produtoras de renováveis, reforçando o papel da transição como vetor de desenvolvimento.
Há o desafio da baixa inclusão social nos processos decisórios. Povos indígenas, comunidades tradicionais e periferias urbanas ainda são pouco ouvidos nas políticas energéticas e nos pactos territoriais, o que gera conflitos socioambientais e compromete a legitimidade dos projetos. O relatório da ONU (2022) destaca que a falta de consulta efetiva às comunidades locais é hoje um dos principais fatores de judicialização de projetos renováveis na América Latina.
Esses elementos deixam claro que o problema não está apenas em ampliar a oferta de energia limpa. A questão central é repensar quem se beneficia, quem participa e quem arca com os custos da transição. O Sul Global tem condições de liderar a nova economia energética, mas se não enfrentar essas barreiras estruturais, corre o risco de apenas trocar um modelo de dependência fóssil por outro um modelo de dependência verde.
O potencial do Sul Global como protagonista da transição
Apesar das barreiras estruturais e da assimetria nos fluxos de investimento, o Sul Global reúne vantagens estratégicas únicas que podem reposicioná-lo no centro da transição energética. Esses fatores, se bem aproveitados, podem transformar a região de fornecedora periférica em protagonista da nova economia verde.
A primeira e mais evidente vantagem é a abundância de recursos naturais renováveis. O sol intenso, os ventos constantes, a biomassa e os resíduos agrícolas disponíveis em larga escala conferem ao Sul Global uma das maiores reservas de energia limpa do planeta. Segundo a IRENA (2023), América Latina e África poderiam suprir até o dobro da demanda elétrica atual apenas com o aproveitamento parcial de seu potencial solar e eólico. Essa diversidade permite pensar em soluções descentralizadas e híbridas, capazes de atender tanto grandes centros urbanos quanto comunidades isoladas, promovendo segurança energética e inclusão social.
Outro vetor importante é o mercado de carbono e o financiamento climático. A consolidação de instrumentos como o mercado regulado de carbono no Brasil (SBCE) abre novas perspectivas para destravar recursos voltados a projetos inclusivos e de impacto social. Estimativas da McKinsey (2024) apontam que o mercado global de créditos de carbono pode movimentar até US$ 50 bilhões anuais até 2030, e países do Sul Global têm condições de capturar uma fatia significativa desse valor, dado seu enorme potencial de descarbonização em energia, agricultura e uso da terra. Além disso, fundos climáticos internacionais, como o Green Climate Fund, já canalizam recursos para projetos em países emergentes, desde que haja governança clara e garantias socioambientais.
A transição também abre espaço para uma indústria em expansão, que vai muito além da geração elétrica. Cadeias produtivas inteiras podem ser alavancadas, incluindo a fabricação de equipamentos, serviços de operação e manutenção, capacitação técnica, softwares de gestão e soluções digitais para redes inteligentes. De acordo com a IEA (2023), cada megawatt instalado em renováveis pode gerar até cinco vezes mais empregos locais do que um projeto fóssil, o que coloca a região diante de uma oportunidade histórica de promover renda, qualificação profissional e inclusão econômica.
Há a oportunidade de fortalecer a integração energética regional. Interconectar redes elétricas, compartilhar infraestrutura e harmonizar regulações pode reduzir vulnerabilidades, evitar sobrecargas nos sistemas nacionais e ampliar o poder de barganha frente a fornecedores globais. A América Latina já ensaia esse movimento por meio de projetos de intercâmbio energético entre Brasil, Argentina e Uruguai, enquanto países africanos estudam corredores regionais de transmissão. Se consolidado, esse processo pode transformar o Sul Global em uma potência cooperativa, menos dependente de pressões externas.
Essas oportunidades deixam claro que a transição energética justa não deve ser vista apenas como um ideal político, mas como uma estratégia concreta de desenvolvimento. O ponto decisivo será a capacidade do Sul Global de transformar sua abundância de recursos em inovação, empregos e soberania e não em mais um ciclo de exploração sem retenção de valor local.
Caminhos para uma transição justa no Sul Global
Para que o Sul Global consiga transformar seu potencial em soberania energética e desenvolvimento sustentável, é necessário ir além das metas climáticas e construir políticas consistentes, com visão de longo prazo. Algumas recomendações estratégicas podem orientar esse processo de forma estruturante.
O primeiro passo é fortalecer políticas públicas voltadas à transição justa, estabelecendo metas claras para ampliar a geração distribuída, promover o emprego local e garantir o acesso universal à energia limpa. Não basta expandir a oferta de renováveis; é preciso que essa expansão esteja conectada a benefícios diretos para as comunidades.
No campo financeiro, torna-se essencial criar instrumentos que reduzam riscos para investidores em regiões periféricas, muitas vezes negligenciadas pelo mercado global. Modelos como garantias soberanas, blended finance e fundos rotativos podem destravar investimentos em territórios vulneráveis, equilibrando as assimetrias de custo de capital que hoje afastam grandes players.
Outra medida necessária é exigir contrapartidas sociais e ambientais em grandes projetos renováveis, garantindo que empreendimentos tragam não apenas energia, mas também capacitação técnica, envolvimento comunitário e conteúdo local. Essa condicionalidade pode ser um diferencial para que a transição deixe de reproduzir modelos extrativistas e passe a gerar desenvolvimento enraizado.
A governança também precisa evoluir. É urgente promover plataformas multissetoriais de gestão energética, que reúnam empresas, governos, universidades e comunidades impactadas. Sem essa articulação, os projetos correm o risco de perpetuar desigualdades e enfrentar resistência social crescente.
A cooperação Sul-Sul deve ser encarada como um vetor estratégico. O intercâmbio de tecnologias sociais, o compartilhamento de conhecimento técnico e a criação de mecanismos conjuntos de financiamento climático podem fortalecer a posição dos países emergentes frente a pressões externas, aumentando seu poder de barganha no cenário global.
Essas recomendações não são exaustivas, mas apontam para um caminho: alinhar a transição energética não apenas à redução de emissões, mas também à construção de justiça social, inclusão produtiva e autonomia regional.
Quem comandará o futuro energético do Sul Global?
A transição energética justa no Sul Global não pode ser reduzida a um debate sobre tecnologias ou metas climáticas. Ela é, antes de tudo, uma escolha política e econômica: quem define os rumos, quem participa das decisões e quem se beneficia dos resultados. Essa é a pergunta central que precisa guiar governos, empresas e investidores.
Na minha visão, se os países do Sul Global limitarem sua participação a fornecer recursos e exportar energia limpa para acelerar a descarbonização de nações desenvolvidas, estaremos apenas repetindo velhos padrões de dependência. Mas se tivermos coragem de construir modelos de governança inclusivos, exigir contrapartidas sociais e econômicas dos grandes projetos e apostar na cooperação regional, podemos transformar a transição em uma alavanca de soberania, inclusão e competitividade.
O futuro da energia não será definido apenas por quem domina a tecnologia, mas por quem for capaz de gerar valor compartilhado e fortalecer os territórios locais. E é no Sul Global que essa virada precisa acontecer com mais força. Temos abundância de recursos, capacidade técnica em expansão e uma urgência histórica de alinhar desenvolvimento a justiça social.
A questão que deixo é simples, mas provocativa: queremos ser protagonistas da nova economia verde ou apenas espectadores de mais um ciclo de exploração?
Sobre a autora
Laís Víctor é especialista em energias renováveis e diretora executiva de parcerias, com 14 anos de atuação no setor de energia. Sua atuação inclui o desenvolvimento de negócios, estruturação de alianças estratégicas e apoio à atração de investimentos para projetos de transição energética, com foco na construção de ecossistemas sustentáveis e inovação no mercado global de renováveis.