O sol que ainda não brilha igualmente
O Brasil vive uma revolução solar silenciosa. A queda de mais de 80% no custo dos sistemas fotovoltaicos na última década colocou o país entre os cinco maiores mercados solares do mundo, com mais de 27 GW de capacidade instalada em geração distribuída, segundo dados da ANEEL (2025).
Mas, apesar dos números expressivos, o avanço da energia solar nas cidades brasileiras ainda reflete um velho padrão: a desigualdade.
A adoção é alta em condomínios de classe média e em áreas rurais, mas quase inexistente nas periferias urbanas, onde os custos iniciais, a falta de informação e as barreiras regulatórias ainda afastam famílias e pequenos negócios desse movimento.
A transição energética urbana é, portanto, mais que uma questão tecnológica, é um projeto social e de política pública. Se o país quiser construir cidades sustentáveis, resilientes e acessíveis, o sol precisa brilhar igualmente para todos.
O avanço da micro e minigeração distribuída
Desde a Resolução Normativa nº 482/2012 da ANEEL, a micro e minigeração distribuída (MMGD) transformou a paisagem energética brasileira. Em pouco mais de uma década, o número de sistemas instalados saltou de menos de mil para mais de 2,3 milhões de unidades consumidoras geradoras (UCs).
Nos centros urbanos, o crescimento é visível em telhados residenciais, comércios, escolas e prédios públicos.
Contudo, a densidade populacional e o custo de espaço dificultam a expansão nos grandes centros. Segundo a Absolar (2024), mais de 70% da geração distribuída está concentrada em regiões de renda média e alta, com forte presença de propriedades horizontais.
Ou seja, o sol é democrático, mas a infraestrutura urbana ainda não é.
A boa notícia é que novas modalidades, como os condomínios solares, cooperativas urbanas e geração compartilhada, estão abrindo espaço para um modelo mais inclusivo. Mas é preciso vontade política, incentivos locais e inovação regulatória para ampliar o alcance.
Barreiras técnicas e regulatórias nas cidades densas
A transição solar urbana enfrenta obstáculos que vão além do custo. Em cidades densas, os limites de espaço físico, sombreamento, regras condominiais e processos de licenciamento tornam os projetos mais lentos e onerosos.
Além disso, a burocracia na conexão com a distribuidora e a falta de padronização entre estados geram insegurança para instaladores e investidores. Em São Paulo, por exemplo, o tempo médio de análise de conexão pode chegar a 90 dias o dobro do prazo em cidades médias.
Há também barreiras invisíveis, como a falta de informação sobre financiamento acessível e a ausência de políticas habitacionais integradas. A transição energética urbana exige que energia, habitação e infraestrutura social caminhem juntas.
É preciso repensar o planejamento urbano com visão sistêmica, conectando o solar distribuído a saneamento, mobilidade elétrica e eficiência energética.
Cidades que lideram a transição
Apesar dos entraves, algumas capitais brasileiras começam a mostrar que a energia solar pode ser política pública urbana.
O Programa Sol nas Escolas (Curitiba) e o Rio Solar (Rio de Janeiro) instalam painéis fotovoltaicos em prédios públicos e unidades de ensino, reduzindo gastos e promovendo educação ambiental.
Em Belo Horizonte, o Programa de Energia Solar Urbana incentiva a criação de usinas coletivas em telhados públicos e áreas ociosas, beneficiando famílias de baixa renda por meio de descontos diretos na conta de luz.
Essas iniciativas, embora pontuais, mostram o caminho: é possível combinar uso inteligente do espaço urbano, inclusão social e sustentabilidade financeira. O desafio é escalá-las e garantir que saiam da esfera municipal para uma política nacional estruturada.
Cooperativas e condomínios solares urbanos
Um dos caminhos mais promissores é o das cooperativas solares, que permitem a grupos de cidadãos compartilhar a geração de energia, dividindo custos e benefícios.
Em Porto Alegre, a Cooperativa Coopernorte Solar já atende mais de 500 associados, gerando energia em áreas industriais e redistribuindo créditos de forma digital.
Nos grandes centros, condomínios solares urbanos surgem como alternativa para áreas verticais e telhados limitados. A geração compartilhada remota, prevista na Lei 14.300/2022, permite que moradores de apartamentos invistam em usinas solares fora da cidade e abatam créditos na conta de luz, um modelo que democratiza o acesso sem exigir grandes obras locais.
Com políticas municipais de apoio, as cooperativas urbanas podem se tornar instrumentos de inclusão energética, levando energia limpa a comunidades que antes dependiam de tarifas sociais e subsídios.
Financiamento e inovação: o motor da transição solar urbana
Se o custo da tecnologia caiu, o custo do crédito ainda é o gargalo.
Famílias de baixa renda e pequenos empreendedores têm dificuldade de acessar linhas convencionais de financiamento. Programas como o Caixa Energia Renovável, o BB Crédito Solar e o Pronampe Verde são importantes, mas ainda pouco adaptados à realidade de quem vive em áreas urbanas periféricas.
A boa notícia é que o mercado de energia solar social está emergindo. Fintechs de impacto e cooperativas de crédito já oferecem microfinanciamentos e modelos de pay-as-you-save, onde a economia gerada na conta de luz cobre as parcelas do sistema.
Além disso, cidades podem se tornar laboratórios de inovação energética, criando fundos locais de energia limpa e redes de empreendedorismo solar com incubadoras e hubs tecnológicos. A integração entre setor público, universidades e startups é o motor que pode acelerar essa transição.
Conexões entre energia, moradia e mobilidade
A transição solar urbana não deve ser pensada de forma isolada.
Ela precisa dialogar com habitação social, saneamento e mobilidade elétrica. Programas habitacionais como o Minha Casa, Minha Vida – Etapa Sustentável já começam a incluir painéis solares em novos empreendimentos.
Da mesma forma, a expansão de estações de recarga alimentadas por energia solar pode apoiar a eletrificação da frota urbana, reduzindo emissões e custos públicos.
A integração entre energia limpa e políticas de infraestrutura urbana é o que transforma o solar de tecnologia em estratégia de cidade inteligente.
Cidades solares, cidades do futuro
O Brasil tem um potencial solar urbano que ultrapassa 45 GW apenas em telhados e fachadas disponíveis, segundo estimativas da EPE (2025). Aproveitar esse recurso é essencial para cumprir as metas de neutralidade de carbono e para reduzir a pobreza energética que ainda atinge milhões de brasileiros.
Mas o avanço não virá apenas da tecnologia: virá de governos locais comprometidos, redes de inovação, e cidadãos engajados.
Cada telhado solar instalado é mais do que uma placa fotovoltaica, é um ato de cidadania climática.
A transição energética nas cidades é, acima de tudo, um projeto coletivo: de arquitetos, engenheiros, gestores públicos, empreendedores e comunidades.
Quando o sol ilumina o centro e a periferia com a mesma intensidade, a transição deixa de ser promessa e se torna justiça energética.
O sol é para todos
A energia solar urbana é a síntese perfeita da transição energética justa: limpa, acessível e democrática.
Para que isso aconteça, é preciso integrar financiamento, regulação e políticas sociais, garantindo que o benefício da energia limpa chegue também às periferias e aos espaços públicos.
Cidades que adotam o solar urbano não apenas economizam: geram empregos, reduzem emissões e formam uma nova economia verde local.
A transição energética não começa no deserto nem no campo, ela começa no telhado de cada brasileiro que decide produzir sua própria energia.
O desafio é transformar essa decisão individual em política pública coletiva.
O futuro das cidades solares depende disso, e o futuro já começou.
Sobre a autora
Laís Víctor é especialista em energias renováveis e diretora executiva de parcerias, com 14 anos de atuação no setor de energia. Sua atuação inclui o desenvolvimento de negócios, estruturação de alianças estratégicas e apoio à atração de investimentos para projetos de transição energética, com foco na construção de ecossistemas sustentáveis e inovação no mercado global de renováveis.
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