A COP28 lançou um chamado global ambicioso: triplicar a capacidade instalada de energias renováveis até 2030. Trata-se de uma meta essencial diante da urgência climática e do esgotamento do modelo fóssil. Naturalmente, o Brasil com uma matriz elétrica já composta por mais de 85% de fontes renováveis, segundo o Ministério de Minas e Energia (MME, 2024) foi apontado como protagonista natural dessa transformação. Afinal, o país reúne recursos abundantes, expertise acumulada e um histórico de liderança em hidrelétricas, solar e eólica.
Mas há uma pergunta incômoda que precisa ser feita e respondida com urgência estratégica: onde a Amazônia entra nesse plano? A maior floresta tropical do mundo, que é frequentemente citada como “o pulmão do planeta” e peça-chave para o equilíbrio climático global, segue, ironicamente, à margem da própria transição energética brasileira. Enquanto estados do Nordeste e Sudeste concentram os investimentos em solar e eólica, a região Norte ainda depende, em muitos casos, de sistemas isolados movidos a óleo diesel, como em Boa Vista (RR), segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel, 2024).
A Amazônia, que deveria ser vitrine de soluções sustentáveis, segue sendo tratada como um apêndice energético, e não como parte integral do plano nacional. Essa omissão revela não apenas um descompasso técnico, mas também uma falha política e estratégica. O Brasil pode ser protagonista global, sim, mas só será coerente se souber incluir a Amazônia não apenas no discurso ambiental, mas no planejamento energético de fato.
Um líder com distribuição desigual
O Brasil é, de fato, uma referência internacional em energia limpa. De acordo com o Ministério de Minas e Energia (MME, 2024), mais de 85% da matriz elétrica brasileira já é composta por fontes renováveis, com predominância da energia hidrelétrica, mas com crescimento expressivo da solar e da eólica nos últimos dez anos. Esse dado coloca o país à frente de grandes economias globais no quesito descarbonização da geração elétrica. No entanto, essa liderança técnica esconde uma assimetria geográfica relevante e, em muitos sentidos, preocupante.
As regiões Sudeste e Nordeste concentram quase a totalidade da nova capacidade instalada em renováveis. O Nordeste, por exemplo, abriga mais de 90% da geração eólica nacional, segundo dados da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica, 2024), e também lidera em usinas solares de grande porte, como as instaladas no Piauí e na Bahia. O Sudeste, por sua vez, domina a expansão da geração distribuída solar, impulsionada por maior poder aquisitivo e densidade urbana.
Enquanto isso, a região Norte segue como um gigante adormecido. Estados como Amazonas, Acre e Roraima reúnem alguns dos maiores índices de radiação solar do país com média acima de 5,5 kWh/m²/dia, segundo o Atlas Brasileiro de Energia Solar (INPE, 2023) e vastas áreas livres de cobertura urbana, com enorme potencial para parques fotovoltaicos e eólicos. Ainda assim, a infraestrutura de transmissão é precária, a cobertura de redes é limitada e os incentivos governamentais praticamente inexistem.
Essa concentração de investimentos nas regiões mais tradicionais cria uma falsa sensação de equidade energética, quando na verdade reforça desigualdades históricas e limita o alcance nacional da transição. Se o Brasil pretende manter sua posição de liderança na corrida global por energia limpa, precisa ampliar o raio de ação do planejamento energético e isso inclui, obrigatoriamente, olhar para o Norte não apenas como floresta a preservar, mas como território estratégico a integrar.
Amazônia: muito potencial, pouca prioridade
A Região Norte engloba os estados que mais contribuem para a Amazônia Legal, que por sua vez é uma área que representa cerca de 60% do território brasileiro, segue à margem da transição energética nacional, apesar de seu potencial técnico, climático e territorial para liderar em soluções renováveis. Mesmo com o discurso internacional que valoriza a floresta como ativo ambiental, a Amazônia ainda não foi incorporada de forma estratégica aos planos brasileiros de expansão de energias limpas.
Segundo o Atlas Brasileiro de Energia Solar, elaborado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE, 2023), estados como Amazonas, Roraima e Acre apresentam radiação solar média superior a 5,5 kWh/m²/dia patamar equivalente, ou até superior, a regiões como o Nordeste, onde a energia solar já está consolidada. Além disso, o potencial eólico em áreas elevadas e abertas, como em partes do sul do Amazonas e norte de Rondônia, também é promissor, embora ainda pouco mapeado com profundidade.
O que torna esse potencial ainda mais relevante é o perfil socioeconômico da região. A presença de milhares de comunidades isoladas, sem acesso a energia confiável, transforma a geração distribuída (como sistemas solares híbridos) em uma solução não apenas viável, mas necessária. A descentralização da geração energética poderia reduzir drasticamente os custos logísticos, as emissões e a dependência de combustíveis fósseis.
No entanto, a realidade é outra. A ausência de um planejamento energético territorialidade, a falta de infraestrutura básica de transmissão e a burocracia desintegrada entre esferas federais e estaduais impedem a estruturação de projetos sustentáveis na região. Como resultado, perpetua-se um modelo caro, ineficiente e poluente, como o observado em Boa Vista, capital de Roraima único estado brasileiro que ainda permanece fora do Sistema Interligado Nacional (SIN). Em 2024, Roraima ainda dependia de usinas térmicas movidas a óleo diesel, com combustível importado via rodovias precárias ou aviões, o que gera uma das tarifas de energia mais altas do país, além de uma pegada ambiental incompatível com o discurso de descarbonização.
Estudos do Instituto Escolhas (2022) mostram que a substituição progressiva do modelo fóssil por energias renováveis na Amazônia poderia reduzir em até 80% os custos com geração isolada em comunidades remotas além de acelerar o cumprimento de metas climáticas nacionais.
O paradoxo é evidente: o Brasil promete ao mundo uma liderança verde, mas ignora justamente a região que mais simboliza seu compromisso ambiental. Sem uma política pública direcionada, a Amazônia continuará sendo tratada como território de conservação passiva e não como um vetor ativo da transição energética que o planeta exige.
Meta global, política local
Triplicar a capacidade instalada de energias renováveis até 2030, como propôs a COP28, não é apenas uma meta técnica é um compromisso político com a justiça climática e a inclusão territorial. Não se pode falar em “transição energética justa” enquanto vastas regiões periféricas, como a Amazônia brasileira, permanecem à margem dos investimentos, fora dos planos estratégicos e invisíveis nos mapas institucionais da energia.
A Amazônia não pode ser apenas o “pulmão do mundo” simbólico ela precisa ser considerada também como um território viável, necessário e estratégico para o futuro energético do Brasil e do planeta. Afinal, é nessa região que coexistem grande potencial solar, vastas extensões de terra disponíveis, comunidades em situação de vulnerabilidade energética e urgência social por inclusão e desenvolvimento.
Apesar disso, a Amazônia segue ausente dos principais planos nacionais de expansão energética. Na prática, a região continua tratada apenas como reserva ambiental e não como parte integrante da geopolítica energética nacional.
Faltam políticas específicas para a Amazônia no contexto da transição energética, e essa omissão perpetua desigualdades históricas. As metas são nacionais, mas os gargalos são locais e só serão superados com políticas regionalizadas, financiamento direcionado e governança participativa.
Como apontou a Climate Policy Initiative (CPI, 2023), mais de 80% do financiamento climático no Brasil se concentra nas regiões Sudeste e Sul, deixando Norte e Centro-Oeste com fatias residuais dos investimentos, mesmo sendo áreas críticas para a mitigação e adaptação climática. Isso cria um paradoxo: as regiões que mais precisam da transição são justamente as que menos participam dela.
Integrar a Amazônia à estratégia energética nacional é uma questão de soberania, de desenvolvimento e de coerência climática. Não basta prometer o triplo da capacidade renovável é preciso multiplicar também o alcance das políticas públicas, levando energia limpa, infraestrutura e dignidade a quem ainda vive às margens do sistema.
Uma proposta: a Rota Verde Pan-Amazônica
É hora de virar esse jogo. Se o Brasil quer realmente liderar a transição energética global e não apenas discursar sobre ela precisa olhar para a Amazônia não como uma fronteira a ser contida, mas como uma plataforma estratégica para inovação, cooperação e desenvolvimento sustentável. Uma proposta viável e ousada seria o lançamento da Rota Verde Pan-Amazônica: uma iniciativa multinacional voltada para a transformação energética nos países amazônicos, com foco em energias renováveis descentralizadas, acesso universal à energia limpa, respeito às comunidades tradicionais e captação de financiamento climático internacional.
Essa rota não seria apenas uma conexão física, mas um marco político e técnico, sinalizando um novo tipo de integração entre Brasil, Colômbia, Peru, Equador, Bolívia, Guiana, Venezuela e outros países da Bacia Amazônica. Juntos, esses países abrigam mais de 7 milhões de km² de floresta tropical e centenas de comunidades isoladas, com desafios energéticos semelhantes: alto custo de geração fóssil, baixa cobertura de rede elétrica, e exclusão energética estrutural.
O modelo proposto poderia se inspirar nas plataformas binacionais de planejamento energético, como a que foi sugerida em estudos recentes da IRENA (2025) na Colômbia, que já identificam zonas prioritárias para geração solar e eólica com base em dados geoespaciais, análise de fator de capacidade, viabilidade econômica (LCOE), disponibilidade de rede elétrica e salvaguardas socioambientais. Esse tipo de abordagem evita improviso, permite alocar melhor os recursos e reduz o risco para investidores.
Para o Brasil, que já possui instituições com expertise reconhecida internacionalmente como EPE, INPE, ONS e Aneel liderar uma estratégia energética pan-amazônica seria uma ação de diplomacia climática com impacto real. Além de ampliar sua influência regional, o país mostraria ao mundo que é possível fazer transição energética com justiça territorial, respeitando o bioma, as culturas locais e o desenvolvimento sustentável.
A Rota Verde Pan-Amazônica também seria um instrumento poderoso para acessar recursos do financiamento climático internacional, como o Fundo Verde para o Clima (Green Climate Fund) e mecanismos de cooperação da União Europeia, Alemanha, Noruega e outros países que já têm aportado bilhões para projetos de mitigação e adaptação na Amazônia, mas que carecem de modelos estruturados e escaláveis.
Mais do que uma proposta diplomática, a rota representaria um novo modelo de governança energética integrada, onde dados, ciência, tecnologia e inclusão social caminham juntos. Um corredor energético baseado em redes inteligentes, geração distribuída solar e eólica, microgrids, sistemas híbridos com armazenamento e soluções desenhadas com participação ativa das comunidades locais.
A Amazônia tem tudo para ser laboratório e vitrine global da transição energética justa, mas para isso, é preciso parar de tratá-la como um desafio isolado e começar a enxergá-la como parte central da resposta climática e energética da América Latina.
A meta começa onde há omissão
O Brasil tem tudo para ser um dos principais pilares da meta global de triplicar a capacidade instalada de energias renováveis até 2030 recursos naturais, capital humano, tecnologia e protagonismo diplomático. Mas esse potencial só se concretiza quando há coerência entre o discurso internacional e a prática doméstica.
Posso afirmar com convicção: não existe transição energética justa, eficiente ou sustentável sem integração territorial plena. A Amazônia precisa sair urgentemente da condição de promessa simbólica para se tornar parte estruturante da política energética brasileira. Não como exceção regulatória, nem como zona de sacrifício ambiental, mas como protagonista de uma nova lógica de desenvolvimento baseada em inovação, inclusão e conservação.
Triplicar renováveis não significa apenas instalar megawatts a qualquer custo. Significa transformar o setor elétrico em um motor de justiça climática, segurança energética e desenvolvimento regional. E isso exige muito mais do que ambição técnica. Exige decisão política, vontade federativa, financiamento direcionado e uma governança capaz de articular o nacional com o local, o ambiental com o social, o curto prazo com o legado de futuro.
Enquanto tratarmos a Amazônia como periferia energética, estaremos reforçando uma geografia desigual da transição, onde os benefícios se concentram e os vazios persistem. A meta de 2030 começa justamente onde hoje há omissão. É nas áreas negligenciadas que mora o maior potencial de transformação e o maior teste de nossa seriedade como país.
Incluir a Amazônia é afirmar, com estratégia e responsabilidade, que o Brasil não pretende apenas cumprir metas pretende liderar com legitimidade.
Sobre a autora
Laís Víctor é especialista em energias renováveis e diretora executiva de parcerias, com 14 anos de atuação no setor de energia. Sua atuação inclui o desenvolvimento de negócios, estruturação de alianças estratégicas e apoio à atração de investimentos para projetos de transição energética, com foco na construção de ecossistemas sustentáveis e inovação no mercado global de renováveis.
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