O futuro da energia limpa na América Latina está sendo desenhado e o Brasil, ironicamente, começa a ficar para trás justamente nas regiões onde mais poderia liderar. A Colômbia, por exemplo, acaba de dar um passo estratégico ao publicar um estudo técnico da IRENA (Agência Internacional de Energia Renovável) que identifica zonas prioritárias para o desenvolvimento de energia solar e eólica com base em critérios sólidos: fator de capacidade, custo nivelado de energia (LCOE), acesso à infraestrutura e impactos socioambientais. Com isso, o país oferece previsibilidade aos investidores e inteligência territorial às políticas públicas.
Enquanto isso, a Amazônia brasileira, dona de uma das maiores radiações solares do mundo e com vastas áreas disponíveis, segue sem planejamento energético regional estruturado. Segundo o Atlas Brasileiro de Energia Solar (INPE, 2023), estados como Roraima e Amazonas registram níveis médios de radiação solar superiores a 5,5 kWh/m²/dia, comparáveis aos melhores pontos do Nordeste. Ainda assim, a região permanece à margem da expansão renovável por falta de planejamento integrado, incentivos direcionados e estrutura institucional que coordene governo federal, estados e agentes do setor.
Pior: grande parte da população amazônica ainda depende de sistemas isolados abastecidos por óleo diesel, com alto custo e impactos ambientais severos. Em Boa Vista (RR), por exemplo, mais de 70% da energia consumida em 2023 foi gerada por térmicas fósseis, segundo a Aneel. Isso ocorre mesmo com o potencial solar suficiente para abastecer todo o estado com energia limpa, segura e mais barata.
A provocação é simples e incômoda: se temos um dos maiores potenciais energéticos do planeta, por que não estamos organizando esse recurso com inteligência estratégica? O que falta não são dados nem tecnologia. Falta decisão política, integração federativa e um plano que transforme a Amazônia em protagonista da transição energética, e não apenas espectadora.
Colômbia: planejamento com base em dados e território
Em setembro de 2025, a IRENA (Agência Internacional de Energia Renovável) publicou o estudo “Zonas Prioritárias para Energia Renovável na Colômbia”, consolidando um exemplo de como dados técnicos podem guiar decisões estratégicas no setor energético. A pesquisa não se limitou a indicar regiões com boa radiação solar ou ventos favoráveis. Foi além: incorporou modelagens de fator de capacidade, análise de custo nivelado de energia (LCOE), acesso à infraestrutura de transmissão, além de critérios socioambientais, como o impacto sobre comunidades e biodiversidade.
O resultado é um mapa energético inteligente, que permite ao governo colombiano definir prioridades com base em evidências, e não em pressões políticas ou interesses difusos. Zonas como La Guajira e Cesar, no Norte do país, foram identificadas com fatores de capacidade eólica acima de 50% números comparáveis aos melhores projetos do planeta. Já regiões como Tolima, Meta e Huila demonstraram viabilidade econômica para solar com LCOE inferior a US$ 30/MWh, tornando-as altamente atrativas para o mercado.
Essa estrutura de planejamento permite antecipar gargalos, organizar leilões mais competitivos, reduzir o tempo de licenciamento e, sobretudo, oferecer previsibilidade regulatória e territorial para investidores. Em um mercado global cada vez mais exigente, esse tipo de clareza não é um luxo é um requisito.
Além disso, o modelo colombiano demonstra que é possível conciliar transição energética com ordenamento territorial, respeitando limites ambientais e sociais, sem travar o avanço tecnológico. A governança proposta pela Colômbia parte de um princípio claro: a energia renovável precisa ser distribuída com estratégia e justiça, não apenas instalada onde for conveniente.
Em vez de depender de investimentos casuísticos ou iniciativas desconectadas, a Colômbia avança com uma política que integra mapeamento técnico, política industrial e visão de longo prazo. O recado é simples: para acelerar a transição, é preciso saber onde pisar. E, nesse ponto, o país está dois passos à frente de vizinhos com potencial muito maior como o Brasil.
Amazônia brasileira: muito potencial, pouco planejamento
Do outro lado da fronteira colombiana, a Amazônia brasileira segue subaproveitada em seu potencial para energia solar e eólica. Apesar de sua dimensão continental, da ampla disponibilidade de terras e da urgente necessidade de diversificação energética, a região ainda opera no escuro não por falta de sol ou vento, mas por ausência de planejamento estratégico.
Segundo o Atlas Brasileiro de Energia Solar, elaborado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o Norte do país apresenta índices de radiação solar superiores a 5,5 kWh/m²/dia, o que o coloca no mesmo patamar e em alguns casos acima de regiões do Nordeste que já concentram grandes usinas solares. A região do Alto Rio Negro, por exemplo, tem potencial comparável a áreas do semiárido baiano, mas com virtualmente nenhum aproveitamento em larga escala.
Estados como Roraima, Acre, Amazonas e Amapá combinam ampla disponibilidade territorial, baixa densidade demográfica e grande carência de infraestrutura energética confiável. Em muitas localidades, o acesso à energia ainda depende de sistemas isolados e movidos a diesel, como em Boa Vista (RR), onde, em 2024, mais de 80% da eletricidade era gerada por termelétricas abastecidas por óleo diesel, com custos operacionais altíssimos e elevada emissão de gases de efeito estufa.
Esse modelo é caro, ineficiente e ambientalmente insustentável. Segundo dados da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), os custos de geração em sistemas isolados na Amazônia podem ultrapassar R$ 1.500/MWh, enquanto o custo nivelado da energia solar gira em torno de R$ 150/MWh uma diferença que evidencia o desperdício de oportunidades.
A Amazônia poderia ser um laboratório estratégico para transição energética descentralizada: microgrids, usinas híbridas, armazenamento local, geração distribuída em áreas indígenas e ribeirinhas. Mas, para isso, é preciso um plano nacional estruturado. E esse plano ainda não existe.
Hoje, não há qualquer estudo técnico do governo federal que delimite zonas prioritárias para energia renovável na Amazônia com base em critérios como fator de capacidade, viabilidade ambiental, vulnerabilidade socioeconômica ou valor público agregado. Sem diretrizes claras, os poucos projetos que surgem tendem a seguir a lógica do mercado, isto é, se concentram onde há retorno financeiro rápido, e não necessariamente onde há maior impacto social ou eficiência sistêmica.
Essa ausência de coordenação resulta em uma oportunidade perdida em série: perdemos investimentos, perdemos eficiência, perdemos tempo. E mais do que isso deixamos de usar a energia como instrumento de desenvolvimento regional e de integração territorial.
Faltam dados ou falta decisão?
O Brasil não carece de capacidade técnica para estruturar um planejamento energético robusto para a Amazônia. Instituições como a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) já produzem dados confiáveis e atualizados sobre radiação solar, velocidade dos ventos, custos de geração, demanda local e infraestrutura existente. O país dispõe, portanto, de meios técnicos, humanos e científicos para criar um estudo nos moldes do que a IRENA organizou para a Colômbia.
O que falta, então, não são dados falta decisão estratégica e vontade política. A ausência de uma política energética regional estruturada para a Amazônia brasileira revela um descompasso entre capacidade e ação, entre discurso e implementação. Se o Brasil já lidera a matriz elétrica mais limpa entre as grandes economias globais, por que ignora uma de suas regiões mais promissoras em renováveis?
A resposta parece estar menos na limitação técnica e mais na inércia institucional e na ausência de prioridade política. A Amazônia, historicamente tratada como fronteira de exploração ou área de preservação, continua à margem do planejamento energético nacional estruturado. E isso tem consequências diretas.
Enquanto o país adia decisões estratégicas, investidores buscam previsibilidade e segurança regulatória. É por isso que os projetos continuam concentrados em regiões como o Nordeste, o Sudeste e o Sul, onde existem leilões recorrentes, marcos regulatórios mais consolidados e infraestrutura de escoamento minimamente estruturada. Nesses locais, a clareza institucional funciona como um ímã para o capital, mesmo quando o potencial técnico é inferior ao da região Norte.
A Amazônia, por outro lado, segue como um território de promessas não concretizadas. Sem um marco legal específico, sem incentivos regionais diferenciados, sem um plano integrado de transmissão adaptado à sua realidade geográfica e sem segurança jurídica suficiente para atrair grandes investimentos, a região fica de fora do ciclo virtuoso da transição energética.
O custo dessa omissão não é apenas econômico. É social, ambiental e estratégico. Sem renováveis, continuamos subsidiando termelétricas caras e poluentes. Sem integração energética, agravamos a desigualdade de acesso à energia. Sem coordenação federativa, perdemos tempo e competitividade.
Planejar juntos: um modelo binacional de cooperação
A experiência da Colômbia não apenas inspira, como também provoca. Se nossos vizinhos conseguiram estruturar um mapeamento técnico robusto com apoio da IRENA, por que não ir além e propor uma iniciativa binacional de planejamento energético para a região Pan-Amazônica?
Brasil e Colômbia compartilham fronteiras, biomas e desafios semelhantes incluindo acesso limitado à energia em áreas remotas, gargalos logísticos, sensibilidade ambiental e demandas por desenvolvimento sustentável com inclusão social. Essa sobreposição de contextos torna a cooperação energética não apenas desejável, mas estratégica.
Uma plataforma binacional, com apoio técnico da IRENA, poderia harmonizar critérios de planejamento, cruzar dados meteorológicos e topográficos, avaliar conjuntamente os impactos sociais e ambientais e criar zonas integradas de desenvolvimento renovável. Essa abordagem permitiria alinhar políticas públicas, atrair financiamento climático internacional, especialmente de fundos multilaterais como o Green Climate Fund, e ainda minimizar riscos para investidores, ao oferecer um ambiente mais coordenado e transparente.
Além disso, ao somar capacidades e recursos, ambos os países ganhariam escala e protagonismo no cenário internacional da transição energética. Essa cooperação também fortaleceria a posição da América Latina como bloco estratégico na corrida global por energia limpa, segura e acessível não apenas como fornecedora de commodities, mas como referência em planejamento sustentável.
Mais do que uma ação diplomática, essa articulação representaria uma mudança de paradigma: um modelo em que a transição energética é tratada como um projeto de território, de bacia, de bioma e não apenas como uma agenda fragmentada por fronteiras nacionais. Seria um passo concreto na construção de uma transição energética que respeita as singularidades amazônicas, potencializa vocações regionais e coloca o planejamento técnico acima de disputas políticas ou interesses de curto prazo.
Conclusão: a hora de planejar é agora
Enquanto a Colômbia avança com dados, mapas e decisões técnicas embasadas, o Brasil segue preso ao ciclo da indefinição. O discurso é ambicioso, mas a prática ainda engatinha. E, nesse intervalo, o país perde competitividade, deixa comunidades isoladas à margem da transição energética e renuncia a um protagonismo que poderia exercer com autoridade e legitimidade.
Como especialista no setor de energia renovável, afirmo com convicção: não faltam sol, vento ou tecnologia na Amazônia brasileira falta decisão política, visão estratégica e compromisso institucional com o futuro. Seguimos desperdiçando tempo e oportunidade enquanto o mundo acelera em direção a matrizes mais limpas, integradas e planejadas.
A Amazônia não precisa ser apenas o pano de fundo para promessas internacionais. Ela pode e deve ser centro de inovação energética, polo de atração de investimentos sustentáveis e modelo de desenvolvimento territorial compatível com a urgência climática. Mas isso exige sair da retórica e entrar no campo da ação: com zoneamento técnico, governança federativa, articulação com os países vizinhos e incentivos que priorizem o interesse público e ambiental.
O momento é agora. Planejar tardiamente é correr atrás do prejuízo e o prejuízo, neste caso, é perder a chance de liderar um dos processos mais importantes do século: a transição energética justa, descentralizada e ambientalmente responsável. Se o Brasil quiser de fato transformar a Amazônia em uma vitrine de futuro, precisa parar de adiar o planejamento e começar a executá-lo com inteligência, técnica e compromisso real.
Sobre a autora
Laís Víctor é especialista em energias renováveis e diretora executiva de parcerias, com 14 anos de atuação no setor de energia. Sua atuação inclui o desenvolvimento de negócios, estruturação de alianças estratégicas e apoio à atração de investimentos para projetos de transição energética, com foco na construção de ecossistemas sustentáveis e inovação no mercado global de renováveis.